Por Tove Happonen
Tradução CBrovko

 

 

Dizem-nos que problemas de saúde mental estão em ascensão no mundo ocidental, particularmente entre as mulheres jovens. Supostamente, essas questões só serão exacerbadas se forem “deixadas sem tratamento”.

Em um artigo no The Guardian, a psicóloga clínica Nihara Krause afirma que durante 2014-2015 apenas 20% daqueles que “precisavam de ajuda” no Reino Unido a receberam. Por “ajuda”, Krause quer dizer “terapia”. Especialistas como Krause dizem que esse aumento nos “problemas de saúde mental” está relacionado à questões como dificuldades financeiras, falta de moradia, pressão para performar (na escola e nas redes sociais) e caso de mulheres) inseguranças graves sobre nossos corpos. Apesar de saber disto, a psicologia não existe para, nem sua função é abordar estes problemas e as razões sistêmicas por trás deles – a opressão dos pobres, minorias raciais e mulheres, por exemplo.

Ainda assim a psicologia não aborda tais questões e as razões sistêmicas por trás delas – a opressão dos pobres, pessoas de cor* e mulheres, por exemplo. Ao invés disso, a terapia visa apenas abordar a reação emocional de cada indivíduo às suas circunstâncias. Isso pode fazer você se perguntar o que a boa psicologia realmente faz para a sociedade em geral, e para as mulheres, em particular.

Durante um seminário numa reunião de mulheres da qual participei neste verão, Sheila Jeffreys argumentou que a psicologia individualiza os efeitos do patriarcado e separa as mulheres umas das outras. Essa análise feminista, outrora comum, era completamente nova para mim, e percebi enquanto discutia isso com outras mulheres jovens (a maioria de nós na casa dos 20 anos) que eu vivia em uma bolha na qual a psicologia nunca era questionada.

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Eu não sou a única. Em resposta às lutas de nossas amigas, mulheres são rápidas em sugerir terapia para lidar com questões como baixa auto-estima, angústia em situações sociais, hábitos de auto-agressão, problemas de relacionamento ou dificuldade de aceitar o próprio corpo – todas questões que são afetadas pelo fato de vivermos sob o patriarcado, como pode ser inferido a partir da discrepância sexual em coisas como, por exemplo, auto-mutilação e ansiedade. “Procurar terapia” tornou-se um conselho padrão. As palavras “Você precisa de ajuda” são aceitas como bem-intencionadas e sadias quando dirigidas a amigos e inimigos. “Ajuda” é entendido por todos, vez que alternativas geralmente não são oferecidas.

Não questionamos se a terapia é ou não útil, mas até os psicólogos reconhecem que é impossível provar qual terapia (se alguma) é mais eficaz. Uma autora da Psychology Today escreve:

“Não concordamos nem qual deve ser o resultado ‘bem-sucedido’. Alívio dos sintomas? Mudança de personalidade? Relacionamentos melhorados? Melhor capacidade de amar e trabalhar? Crescimento pessoal e auto realização? Todas as opções?”

O que essas coisas significam fora do quadro da psicologia? E como você determinaria e mediria os resultados? Crescimento pessoal, melhoria, realização, atualização e empoderamento soam como objetivos nobres então compreendemos e encorajamos quando mulheres os chamam de “objetivos pessoais”. Estamos todas exaustas, estressadas, esgotadas, deprimidas e angustiadas, então compreendemos e empatizamos com as mulheres que experimentam o mesmo. Mas, como feministas, sabemos que o patriarcado existe e que enfrentamos várias formas de opressão neste mundo, então por que não questionamos o conselho muitas vezes repetido, “Cuide de você primeiro“, quando uma irmã expressa seus problemas, e em vez disso, digamos: “Vamos nos ajudar umas às outras”.

Dividir e conquistar é o truque mais antigo do livro do opressor e está trabalhando contra nós. Em seu livro de 1975, Psychotherapy: The Hazardous Cure (Psicoterapia: A cura perigosa), Dorothy Tennov detalhou o que a terapia realmente é, em termos de profissão e estudo, demonstrando como é difícil ela se provar útil, em um momento em que a psicologia estava ganhando força. Muitas de suas preocupações com a contínua normalização da psicoterapia se tornaram realidade, pois se tornou mais e mais socialmente aceito que as mulheres consultassem os terapeutas e se tornassem terapeutas. Mas a desestigmatização da terapia não é positiva para o movimento feminista. Como Tennov concluiu:

“Não há dúvida de que a pessoa que vai a um psicoterapeuta e aprende a se adaptar a uma situação, a se ajustar, é menos propensa a aplicar pressão numa tentativa de provocar mudanças na sociedade. A psicoterapia é uma distração de outras pressões ”.

Nós fomos ensinadas, através da normalização da terapia, a individualizar nossas lutas e olhar para dentro, e não para fora. A terapia funciona para impedir que nos conectemos umas com as outras. Ela nos isola – cada uma de nós é nomeada nossa própria terapeuta, que nos ensina a lidar com nossos “problemas” em particular. Aprendemos que devemos cuidar de nós mesmas e trabalhar em nossas personalidades para lidar melhor com o mundo ao nosso redor, antes de podermos agir. O que a terapia não nos ensina é que a raiva das mulheres é justificada, que o nosso sofrimento é real e que o que frequentemente descrevemos como “problemas de saúde mental” é causado principalmente – ou grandemente exacerbado – pela opressão estrutural. A psicologia finge que a solução – ou “tratamento” para – os nossos problemas está em melhorar nossas atitudes e capacidade de lidar, em vez de enfrentar os problemas juntas.

Escrevendo para o The Conversation, Zoë Krupka explica que os terapeutas aprendem a culpar os próprios clientes por pelo menos parte do problema que eles enfrentam. Porque eles não podem desmantelar a opressão sistemática ou capacitar seus clientes em um sentido genuíno (isto é, dando-lhes poder real na sociedade) em sessões privadas, os terapeutas têm que encontrar questões para resolver dentro de seu cliente. Nos casos de violência masculina, por exemplo, os termos vínculo traumático, “co-dependência” e “síndrome de Estocolmo” existem para colocar alguma culpa na vítima (a mulher), enquanto a existência de “controle da raiva” existe como propaganda apologista do perpetrador (o homem). “Isso contribui para a falta de poder das mulheres e para nossa incapacidade geral de ver a floresta violenta para as árvores”, escreve Krupka.

Há muitos exemplos de como a psicologia se infiltrou em nosso vocabulário e moldou o discurso. Por exemplo, a ideia de que as mulheres podem sofrer de misoginia ou homofobia “internalizada”, em vez de falar sobre essas questões como resultado de preconceito e ódio externos sistêmicos. Também influenciou a forma como abordamos amizades e relacionamentos com outras mulheres. Desabafar para uma amiga é algumas vezes descrito como “terapêutico”, e as mulheres costumam dizer que bancam a “terapeuta de poltrona” quando consolam, aconselham e ouvem suas amigas. Bons terapeutas são descritos como empáticos, atenciosos e, acima de tudo, pessoas em quem confiamos e podemos falar abertamente sem sermos julgadas. Essas são todas as qualidades que se espera que descrevam um bom amigo, mas nos ensinaram que não somos suficientes e que existem “profissionais” que são simplesmente melhores em empatia do que nós. Quando nossos amigos e entes queridos estão profundamente perturbados, nós os apoiamos na busca de “ajuda profissional”, como se fosse um arranjo unilateral no qual um estranho – desapegado de suas vidas cotidianas, pago e em posição de poder sobre eles  – será mais capaz de cuidar deles do que estaríamos. Não confiamos em nós mesmas para cuidar dos nossos porque existe uma opção alternativa “profissional”.

Essa profissionalização da empatia e do cuidado afetou profundamente o movimento feminista, pois os centros e abrigos para mulheres que sofreram violência estão sendo cada vez mais ocupados por pessoas com diplomas, em vez de mulheres regulares – incluindo aquelas que foram vítimas da violência masculina e já procuraram ajuda nesses abrigos. Os abrigos para vítimas de estupro em Vancouver e o Abrigo para mulheres VRRWS, (o mais antigo centro de crise de estupro do Canadá) ainda operam por meio de um modelo de aconselhamento entre pares e como um coletivo. A tendência de profissionalização do trabalho de combate à violência prejudicou nossa capacidade de ajudar e atuar como feministas, como explica Pauline Funston, da VRRWS:

“Agora vemos ‘clientes’ e fornecemos um ‘serviço’, uma indicação clara da diluição de princípios e práticas feministas. As mulheres espancadas que vêm para os centros de apoio agora nos vêem como outras, em vez de iguais…

… A erosão dos padrões feministas em favor do profissionalismo está custando às mulheres abusadas sua dignidade, autonomia e seu direito de participar do movimento feminista.

(…) Estamos reduzidos a nos tornar mais um serviço social que individualiza a experiência da mulher abusada e trabalha contra a mudança política para ela e para todas as mulheres. ”

A terapia se opõe à ação feminista coletiva tanto por determinar que algumas de nós somos incapazes de apoiar outras mulheres se não tivermos diplomas, como também por alegar que somos inadequadas mentalmente – precisando nós mesmas de terapia. Coloca o ônus de superar os efeitos do patriarcado, juntamente com a culpa por ele, sobre nós como indivíduos. Eu frequentemente ouvi de terapeutas, ao expressar o quão impotente me sentia em termos de minha capacidade de melhorar a situação das mulheres em nossa sociedade, que eu não conseguiria me concentrar em tentar salvar o mundo até que me salvasse primeiro. Eu estava em um estado mental muito frágil para fazer alguma diferença, eles disseram. Eu não poderia ser ativista sem me prejudicar no processo. Assim como as nossas antepassadas ​​foram rotuladas como histéricas, somos ensinadas que estamos mentalmente indispostas ou instáveis ​​para sermos ativistas eficazes. Aprendemos que sofremos de coisas como ansiedade social, depressão, diversas fobias, bipolaridade, trauma e que precisamos superar tudo isso e nos curar através da “ajuda” profissional, antes que possamos nos concentrar em organizar e mudar qualquer coisa além de nós mesmas.

No passado, as mulheres aprendiam através da conscientização que não estavam sozinhas e isso era uma fonte de força. Sua raiva não era debilitante, sua tristeza não era uma falha de caráter e seu medo não era um diagnóstico. Seus “problemas” não eram apenas pessoais, mas amplos, e afetavam todas as mulheres. Foi através do encontro e da partilha com outras mulheres, pessoalmente, que as mulheres puderam esclarecer e nomear coisas como patriarcalismo, supremacia masculina, misoginia, racismo, anti-lesbianismo, abuso, pobreza e opressão em vez de “depressão, “doença mental”, “auto-ódio interiorizado” e “estresse”.

Mesmo as mulheres jovens que debocham da ideia de que o “autoempoderamento” pode ser encontrado na maquiagem e no vestuário ainda se apegam à ideia de que podemos nos fortalecer através da terapia e do autocuidado. Em vez de usar nossa dor e nossa raiva, temos que assimilar o status quo mentalmente estável. Como se houvesse um estado mais lógico e natural às mulheres no patriarcado do que perturbar e rebelar-se

A idéia de que devemos primeiro nos curar antes que possamos agir plenamente é tão falaciosa quanto a idéia de que devemos primeiro “amar a nós mesmas” para sermos amadas pelos outros. Enquanto observavam a comunidade lésbica e feminista sendo engolidas por psico-bobagem*, Celia Kitzinger e Rachel Perkins, escreveram em seu livro de 1993, Changing Our Minds:

“A psicologia afirma que ‘amar a nós mesmos’ é um pré-requisito essencial para amar os outros e para um trabalho político efetivo. Nós não podemos acreditar nesta afirmação …

Amar os outros e ser politicamente eficaz, não são coisas que você magicamente se torna capaz de fazer uma vez que passa a “amar verdadeiramente a si mesma”. Em vez disso, você aprende a amar no processo de amar e a se envolver politicamente através do engajamento político.”

Esta mensagem permanece importante ainda hoje vez que a noção de psicologia passou, em grande parte, sem ser desafiada pelas feministas modernas.

Para seguir em frente, temos que nos livrar da idéia de que precisamos de “profissionais” de saúde mental para ser nossos amigos e aliados, e de que uma atitude e mentalidade diferentes é o que nos permitirá derrubar o patriarcado. A opressão sistêmica não é resolvida aprendendo a lidar com ela, processando-a com um profissional ou tornando-se um profissional. Ela precisa ser desmantelada como instituição, por meio de uma ação feminista organizada e implacável, aberta para todas as mulheres, assim como a instituição da psicologia, que nos prende em nossas próprias mentes, isoladas não apenas uma da outra mas também de uma análise estrutural.

Ironicamente, muitas vezes é um bloqueio mental aquilo que impede muitas jovens de se tornarem feministas eficazes. Mas esse bloqueio não é ansiedade, depressão ou estresse – ao contrário, é a ideia de que nossas emoções e problemas são pessoais e que devem ser superados sozinhos. Temos que deixar de lado a ideia de que o erro está conosco, e não com o mundo. Temos que nos encontrar e nos organizar na vida real, ajudar umas às outras, ser solidárias e compreensivas, ouvir e ter empatia, ser tolerantes e gentis, mas também firmes e verdadeiras. Devemos entender que estamos todas feridas, frustradas e com raiva – e que isso não é algo com que temos de lidar sozinhas.

Peço às jovens feministas que se sentem impotentes e frustradas para se encontrarem na vida real. Procurem grupos feministas estabelecidos em sua cidade ou área para participar, abrigos de mulheres para voluntários, círculos de leitura, clubes do livro, aulas de autodefesa e, se você não encontrar nenhum, comece seu próprio grupo. Sejam a força e a rede de apoio umas das outras, compareçam em grupo a comícios e demonstrações; façam sinais, slogans, adesivos e panfletos para distribuir juntas; organizem atividades e protestos. Eu aconselho criar laços com mulheres mais velhas, a fim de aprender com sua experiência e conhecimento, embora seja igualmente importante atuar independentemente como uma nova geração de feministas e formar nossas próprias redes. Eu consegui encontrar amigas e eventualmente formar uma organização feminista, com o objetivo de facilitar espaços separatistas de mulheres, através de fóruns feministas radicais no Facebook e blogs no Tumblr. Atreva-se a dar o próximo passo e encontre-se na vida real. Junte-se às organizações e grupos que você sempre observou. Force-se a sair e conhecer novas mulheres.

Nossos objetivos não devem ser auto-capacitação ou auto-aperfeiçoamento, mas a libertação da mulher.

Para aquelas que possam se sentir na defensiva, deixe-me dizer que, como alguém que foi diagnosticada com “depressão clínica” por uma década, e viu oito terapeutas diferentes durante este período (um novo cada vez que retornou): nunca me senti melhor mentalmente desde que desisti da terapia e me tornei uma ativista, usando minhas emoções para essa causa e encontrando amigas dentro desse movimento – verdadeiras irmãs.

 

Notas

* Psico-bobagem, no texto original psychobabble: o uso de palavras advindas da psicologia para dar lustro profissional em algo sem embasamento científico.