Por Elizabete Rodrigues da Silva

A consciência de gênero e as primeiras idéias feministas foram identificadas, historicamente, no bojo das transformações políticas e econômicas da Europa setecentista, conforme Sardenberg & Costa que analisam detalhadamente esse contexto em “Feminismos, feministas e movimentos sociais”, (1991). O Feminismo surge e se organiza como movimento estruturado, a partir do fenômeno da modernidade, acompanhando o percurso de sua evolução desde o século XVIII, tomando corpo no século XIX, na Europa e nos Estados Unidos, transformando-se, também, em instrumento de críticas da sociedade moderna. E, apesar da diversidade de sua atuação, tanto nos aspectos teóricos, quanto nos aspectos práticos, o Feminismo vem conservando uma de suas principais características que é a reflexão crítica sobre as contradições da modernidade, principalmente, no que tange a libertação das mulheres (COSTA, 1998).

A primeira fase do Feminismo, designada de Primeira Onda, surge, portanto, com a Revolução Francesa e, dentre os textos fundadores, destaca-se a obra de Mary Wollstonecraft “A Vindication of the Rights of Woman”, publicada em 1792, em Londres, que reivindicava a extensão dos direitos políticos às mulheres – que até então era somente para os homens –, através de sua inclusão no campo da cidadania, embora tendo esta, também, um caráter essencialmente masculino. Mary Wollstonecraft sistematizou a primeira denúncia sobre a subordinação das mulheres, usando a doutrina liberal dos “direitos inalienáveis do homem” para reivindicar o direito das mulheres, sendo a defesa do direito à educação a maior bandeira de luta do feminismo naquele momento em diante.

A mulher européia desse contexto tinha seu estatuto social semelhante ao dos escravos (MILL, 1985) e o pensamento feminista da primeira fase passa a questionar a contradição da modernidade, que se estabeleceu entre o universalismo dos direitos políticos e individuais e o universalismo da diferença sexual, legitimada pela justificativa ideológica de que essa diferença era uma ocorrência da natureza.

Ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, a defesa dos direitos das mulheres passou a assumir formas organizadas de expressão em vários países e se diversificou conforme a assimilação das idéias feministas em cada contexto. Nas reivindicações do Feminismo desse período, ações como a extensão dos direitos políticos às mulheres, desenhadas pelo Movimento Sufragista, o acesso à educação pública, a preocupação com questões sociais ligadas à família – proteção à maternidade – e ao trabalho – direito das mulheres trabalhadoras, distribuídas, respectivamente, na perspectiva igualitária baseada no humano universal e na perspectiva dualista baseada na função social da maternidade, caracterizaram a Primeira Onda do Feminismo como Feminismo Liberal.

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No Brasil, no início do século XIX, as mulheres, na maioria, viviam enclausuradas em antigos preconceitos e imersas numa rígida indigência cultural. Urgia levantar a primeira bandeira, que foi a de aprender a ler e escrever, até então, reservada ao sexo masculino. Destaca-se nesse momento, Nísia Floresta, nascida no Rio Grande do Norte e considerada a primeira feminista brasileira a romper os limites do espaço privado e a publicar textos em jornais da chamada grande imprensa. Em 1832, publica a obra “Direito das mulheres e injustiça dos homens”, uma tradução livre da obra de Mary Wollstonecraft, constituindo-se como texto fundante do feminismo brasileiro por tratar do direito das mulheres à instrução e ao trabalho(COSTA, 1998).

Nísia Floresta identifica na herança cultural européia, especificamente a portuguesa, a origem do preconceito no Brasil e ridiculariza a idéia dominante da superioridade masculina. Para ela, homens e mulheres são diferentes no corpo físico, mas não o são na alma, observando que as desigualdades que resultam em inferioridade vêm da educação e das circunstâncias da vida. Segundo a autora, os homens se beneficiam com a opressão feminina, e, somente, o acesso à educação permitirá às mulheres tomarem consciência de sua condição de inferioridade (FLORESTA, 1989).

Em meados do século XIX, também começam a surgir os primeiros jornais e periódicos dirigidos por mulheres e voltados para a luta da emancipação e construção da identidade feminina. O século XX inicia com uma movimentação inédita de mulheres que clamam pelo direito ao voto, aos cursos superiores e à ampliação do campo e trabalho, visando à emancipação da mulher nas diferentes esferas da vida social.

Porém, essa Primeira Onda é acometida por uma ruptura que conduz à desmobilização do movimento em vários países. Alguns fatos, como por exemplo, a divisão entre pacifistas e defensores da Primeira Guerra Mundial, a crise econômica que se estendeu até a década de 30 e a extensão do direito ao voto às mulheres em vários países ao longo das décadas de 20 e 30 do século XX, fizeram parte do contexto que desarticulou o Feminismo Liberal.

Por outro lado, é nesse imbricado processo de contradições que o Feminismo, enquanto pensamento e movimento, sofreu baixas, ao mesmo tempo em que se refez e se reorganizou culminando em outras fases, acompanhando, visivelmente, o desenvolvimento político, social e cultural do mundo ocidental. Vários fatores contribuíram para uma nova tomada de consciência. Dentre eles, destacam-se as conquistas do próprio Feminismo Liberal, tanto no campo da produção teórica, quanto no campo da prática, como por exemplo, “A Mística Feminina”, publicada em 1963, obra de Bety Friedan – a máxima representante desta corrente – e a Organização Nacional para as Mulheres – (NOW), criada em 1966, por esta mesma autora; o progresso educativo das mulheres ao longo do século XX; a insatisfação causada pelo recuo das mulheres no processo de desmobilização do movimento; e a percepção de um contexto onde se alargava, cada vez mais, o fosso entre a cidadania e a autonomia das mulheres enquanto indivíduos.

A ruptura com a Corrente Liberal não ocorreu em todos os lugares e ao mesmo tempo. Nos Estados Unidos, nas décadas de 60 e 70, a onda que agitou as feministas para uma nova organização das lutas se caracterizou como Feminismo Radical. Ressurge, então, a Segunda Onda do Feminismo, rica em reflexão e investigação acadêmicas sobre a origem das desigualdades sexuais, bem como, forte nas lutas radicais contra todas as formas de opressão feminina situadas, principalmente, no sistema patriarcal. A ênfase das análises era a família, a sexualidade, a violência sexual e os direitos sobre o corpo.

O Feminismo Radical é uma corrente feminista que se assenta sobre a afirmação de que a raiz da desigualdade social em todas as sociedades até agora existentes tem sido o patriarcado, a dominação do homem sobre a mulher. A Teoria do Patriarcado considera que os homens são os primeiros responsáveis pela opressão feminina e que o patriarcado necessita da diferenciação sexual para se manter como um sistema de poder, fundamentado pela explicação de que homens e mulheres seriam em essência diferentes.

Para vencer a opressão feminina, as feministas desta corrente defendem que é fundamental, mas não basta apenas, concentrar os esforços na busca das explicações sobre as diferenças entre os sexos e a subordinação da mulher no sistema patriarcal, mas que as mulheres devem se unir na luta contra os homens (argumento criticado e considerado por outras feministas como “guerra dos sexos”), assim como, devem rejeitar o Estado e todas as instituições formais por ser produto do homem e, portanto, de caráter patriarcal.

Partindo desta concepção, as feministas que atuaram durante a década de 70 e períodos posteriores, tiveram como prioridade uma pauta ativa de lutas e reivindicações configuradas em políticas práticas aqui pontuadas, como por exemplo, a marcante política de resistência e contestação em todo o mundo; a defesa da legalização do divórcio e da aceitação dos chamados filhos “ilegítimos”; reivindicações de creches para os filhos das mulheres trabalhadoras; a defesa de que as mulheres tivessem controle sobre seu próprio corpo – que no momento era a questão da reprodução e descriminalização do aborto; a defesa da criminalização da violência contra as mulheres, este é um assunto que, embora, considere os avanços, ainda representa um dos principais pontos da pauta das feministas atuais; a luta pela politização da esfera pública e pela implantação de casas de acolhimento à mulheres em condições de risco;

e uma das principais realizações do feminismo radical foi a organização de grupos de auto-consciência e de auto-conhecimento;

Uma das contribuições mais significativas do Movimento Feminista Radical foi a organização e instauração de grupos de autoconsciência, seguidas da abertura de uma agenda para as mulheres voltada para práticas de uma vida alternativa, pois, considerava que os homens, não apenas os de elite, recebiam benefícios econômicos, sexuais e psicológicos do sistema patriarcal, uma vez que, em geral eles acentuavam a dimensão psicológica da opressão.

O despontar da Corrente Feminista Radical, foi fortemente marcado por uma luta política voltada para o conhecimento, valorização e libertação do corpo feminino. Tanto nos grupos de autoconsciência como em outras áreas de atuação foram adotadas várias ações e posturas, tanto de protestos como de reivindicação e efetivo trabalho, para a conscientização das mulheres em relação ao seu corpo.

Atos como a queima pública de sutiãs, a sabotagem de comissões de peritos sobre o aborto, formadas por uma maioria de homens, fizeram com que a voz do feminismo, através das radicais entrasse em todos os lugares e não só criaram espaços próprios de auto-ajuda e de estudo, mas desenvolveram uma saúde ginecológica não patriarcal, motivando as mulheres a conhecerem seu próprio corpo. Também fundaram centros para atender e defender mulheres maltratadas pelo companheiro. O movimento é a expressão concreta das reflexões e produções teóricas das feministas sobre as relações pessoais como relações de poder, também questionando a separação entre o público e o privado, identificada pela expressão “ o pessoal é político” (SARDENBERG, 2002).

Os principais pressupostos teóricos da Corrente Radical são fornecidos por Shulamith Firestone na obra “A Dialética do Sexo”, de 1970, por Kate Millet na obra “Política Sexual”, de 1971 e pela francesa Simone de Beauvoir em o “Segundo Sexo”, publicado em 1949, que discutiram, mesmo em perspectivas diferentes, as origens da opressão feminina a partir da estrutura social, descartando qualquer possibilidade de explicação de cunho biológico.

Simone de Beauvoir, reconhecida como a precursora do Feminismo Radical, orientou a ação feminista na França, a partir dos anos 50, para as questões da sexualidade e da família. Em o “Segundo Sexo”, esta autora analisa o conflito entre a liberdade e a autonomia da mulher enquanto sujeito, e a sua condição de alteridade enquanto mulher, salientando os fatores sociais, políticos e históricos que contribuem para a construção da feminilidade, formando uma rede de relações de poder que estruturam a família e a sexualidade É uma obra de referência para as feministas radicais naquele momento.

Simone de Beauvoir assenta o feminismo em bases históricas e, mesmo sem usar a palavra gênero, foi a primeira feminista a analisar a situação da mulher na perspectiva do, hoje conhecido, conceito de gênero. Assim, ela faz a crítica “ao determinismo biológico, às abordagens psicologizantes e ao materialismo histórico, argumentando que a mulher é uma construção social historicamente determinada, construída no pensamento ocidental como ‘o outro’” (SARDENBERD et all, 2000).

Nos Estados Unidos, o Feminismo Radical se desenvolveu a partir de uma ampla e rica heterogeneidade teórica e prática, embora nascendo de bases comuns. Tanto Firestone, quanto Millet se apropriaram de ferramentas teóricas do marxismo e da psicanálise. Suas obras trouxeram conceitos fundamentais para a análise feminista como o patriarcado, gênero e desigualdade sexual. Faz-se necessário, portanto, um breve diálogo com estas autoras sobre as origens da opressão feminina.

Para questionar a divisão sexista e a conseqüente discriminação sexual, Sulamith Firestone sugere “saber como ela evoluiu através de que instituição ela opera hoje”. Embora, vale observar, que, atualmente, não tem sido tão importante procurar as causas universais e as origens, por se entender que desta forma cai-se no essencialismo, até porque há divergências entre as várias estruturas que apresentam as possíveis respostas, como o patriarcado e o sistema econômico, dentre outros.

Firestone toma emprestado o método analítico de Marx para discutir a questão da opressão das mulheres, comparando a guerra dos sexos com o antagonismo das classes analisado por Marx e Engels, embora entenda que “lidamos com um problema mais amplo, com uma opressão que remonta além da história escrita, até o próprio reino animal” (1970, P. 12 -15). Recorre ao método analítico de Marx e não às suas opiniões sobre as mulheres, mas o método de análise dialética e materialista da história que tinha como objetivo traçar o desenvolvimento das classes econômicas, a partir de causas orgânicas. Ou seja, compreender os mecanismos da história para dominá-la. Apesar de que não se pode explicar a opressão das mulheres, a partir da opressão estritamente econômica, pois não aprofunda o suficiente. Embora, Engels tenha entendido a opressão das mulheres como uma questão de classe na cadeia da produção partindo da família, onde o homem era o proprietário e a mulher os meios de produção.

Fazendo a crítica ao materialismo histórico, Firestone, reproduz de Engels o quadro do desenvolvimento e passagem do Sistema Matriarcal ao Sistema Patriarcal, em que a escala de tempo é linear e baseia-se na perspectiva do desenvolvimento dos modos de produção. Daí chega à conclusão de que a explicação econômica não dá conta de toda a realidade, uma vez que esta antes de ser econômica é psicossocial. Sugere, portanto, a autora uma alternativa de desenvolver uma visão materialista da história baseada no sexo, invertendo as posições. Para ela, a divisão desigual dos sexos, as classes sexuais, brotou da realidade biológica e não fora igualmente privilegiada, sendo a família biológica um poder de distribuição inerentemente desigual. Firestone caracteriza a família biológica a partir dos fatos que considera imutáveis e básicos e conclui que é a divisão sexual que levou à divisão do trabalho, originando toda divisão posterior em classes econômicas e culturais, além de outras características biologicamente determinadas, como a raça e a idade.

Claramente a autora confirma um determinismo biológico para explicação das desigualdades sexuais e universaliza a família biológica, considerando suas variações nos espaços e tempos, mas as contingências biológicas existiram em todas elas, gerando distorções psicossociais específicas na personalidade humana. Segundo, esta explicação, a tirania do homem sobre as mulheres e crianças tem base nas condições biológicas.  Apesar da crítica ao materialismo histórico, Firestone toma-o como direção para a sua análise e, comparativamente à proposta de Marx da revolução do proletariado para tomar os meios de produção, propõe a revolução das mulheres para a eliminação das classes sexuais e a tomada do controle da reprodução, incluindo a propriedade do corpo e o controle da fertilidade humana.i Eliminando não apenas o privilégio dos homens, mas a própria distinção sexual, substituindo a hetero, a homo e a bissexualidade pela pansexualidade. Orientando o nascimento e a educação das crianças para um pequeno grupo genérico e organizado, compensando qualquer vestígio de inferioridade da força física com a cultura.

Firestone percebe na divisão biológica dos sexos a principal raiz da divisão das classes e sugere que para erradicá-las faz-se necessário uma revolução sexual mais ampla que a revolução socialista. Mas, se é na divisão de classes que se assentam todos os males da sociedade atual, uma vez banida as classes, resolvem-se todos os problemas, inclusive, a subordinação das mulheres. Enquanto Firestone percebe a origem do antagonismo entre os sexos, inicialmente, na biologia humana, transformando-se, posteriormente, numa questão de classe que até sugere, embora sem insinuar nenhum conflito, uma ampla revolução socialista, Kate Millett, por sua vez, vai buscar nas relações de poder configuradas como uma política sexual, construídas social e culturalmente, a explicação para a subordinação das mulheres.

Segundo Kate Milett, é o patriarcado a instituição que operacionaliza a divisão sexista fornecendo os princípios e valores que organizam a sociedade com base em diferenças hierarquizadas e afirma que “o patriarcado é uma ideologia dominante que não admite rival; talvez nenhum outro sistema tenha exercido um controle tão completo sobre seus súditos” (1975, p.45). O sistema patriarcal arraigado em toda a sociedade encontra na família seu lugar de reprodução. A família passa a ser o espelho da sociedade e representa uma unidade básica do patriarcado, um de seus pilares fundamentais. É na família que categorias como temperamento, status e os papéis, são, pela primeira vez, adotados e assimilados com todo rigor e reproduzidos para a sociedade como modelos “originais” de comportamento para cada um dos sexos.

Como uma corrente de poder, a família formata os seres conforme o modelo patriarcal, que formata a sociedade e assim se reproduz no governo e vice-versa, ligados entre si, formando uma rede ideológica do poder masculino. Além do reforço da religião que legitima o modelo de que “o pai é a cabeça da família”, transferindo, sempre, para as outras instâncias da sociedade a figura do homem como chefe, cabeça, líder, protetor da família, da sociedade e do Estado, liderança determinada por Deus e pela própria natureza. O pai representa o dono e senhor da família, seu grau de parentesco não é simples como os outros, ele é o homem, o chefe da família, portanto, tem a propriedade de tudo e todos.

A teoria do patriarcado se propõe a demonstrar que o ”sexo é uma categoria social impregnada de política” (MILLETT, 1975, pp. 32 e 34), e que não está presente apenas na esfera da intimidade das pessoas, mas nas mais altas esferas do mais elevado poder, uma vez que, todas as instituições, como o exército, a indústria, a tecnologia, as universidades, a ciência, a política e as finanças, estão teoricamente em mãos masculinas. É uma relação essencialmente política, em que o poder e os privilégios favorecem apenas, aos homens. Kate Millett, uma das primeiras feministas que sistematiza o patriarcado como sistema e por um viés político em que o poder é o objetivo maior desse sistema, analisa a prioridade natural do macho sobre a fêmea como a mais resistente que qualquer outro tipo de segregação e mais uniforme, rigorosa e tenaz que a estratificação das classes. A dominação do macho sobre a fêmea é a ideologia mais arraigada em nossa cultura, por cristalizar o conceito mais elementar de poder.

O poder político dos homens em detrimento às mulheres, tem se manifestado em todas as estruturas da vida humana, seja social, econômica, política, religiosa, de classe e de raça, em todos os tempos e lugares que se tem conhecimento. O que se pode considerar de relevante, no sentido da não generalização do sistema patriarcal, são os diversos graus e variações entre os povos, considerando as transformações ao longo da história.

O patriarcado se organiza a partir de um esquema ideologicamente elaborado e socializado através de normas de conduta para cada sexo, fundamentais à sua manutenção. Estas normas baseiam-se em três categorias anteriormente já citadas: o temperamento, componente psicológico; o papel, componente sociológico; e o status, componente político. O temperamento se desenvolve a partir dos estereótipos definidos para cada categoria sexual, ou seja, ao homem cabe ser agressivo, inteligente, forte e eficaz; à mulher cabe ser dócil, passiva, ignorante, frágil e virtuosa. Quanto aos papéis, a mulher assume o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos, enquanto o homem realiza seus interesses no campo da produtividade humana. A distribuição das funções em simetria com o temperamento influencia no status que determina a superioridade masculina e a inferioridade feminina. (MILLETT, 1975, p. 35).

Contudo, nem o temperamento sexuado, nem papéis e status social, derivam absolutamente da natureza. A supremacia masculina, portanto, não surgiu da força física, nem de outros princípios biológicos, mas de um sistema de valores criado historicamente. Embora, Millet reconheça as limitações, tanto teóricas, quanto da existência de provas sobre as origens do patriarcado, sugere acreditar na possibilidade deste sistema ter sucedido em um período em que a humanidade primitiva ainda não teria vivido o advento da civilização, quando firmou-se uma mentalidade que considerou a fertilidade e os processos vitais como princípios primários. Esta autora ainda conjectura que foi o descobrimento da paternidade a circunstância que inverteu as atitudes humanas, pois na sociedade arcaica os cultos à fertilidade se orientaram para o patriarcado subestimando e degradando a função da mulher na procriação e atribuindo o princípio vital ao falo.

Assim, percebe-se que a questão reside na intrincada luta pelo poder político entre os  sexos e não no valor natural dos fatos. Portanto, as distinções hierarquizadas entre os sexos, que estabelece o patriarcado, com base no temperamento, status e papel social, assentam-se sobre bases essencialmente culturais. Da mesma forma que essas três categorias sustentam o patriarcado, a identidade sexual é fruto da aprendizagem formando a personalidade psicossocial, enquanto a linguagem passa a ter um papel fundamental que é o estabelecimento do gênero que vai se definindo e se firmando em cada etapa da vida do ser humano. Isto é, exatamente, o que Millett interpreta como “força de uma socialização universal, baseada na ‘fé’ ou sobre o sistema de valores adquirido”. (1975, p. 62).

Com base nos conceitos e nas idéias formuladas por Beauvoir, Millett e Firestone, dentre
outras, as feministas norte-americanas e, conseqüentemente, as demais elaboraram sua pauta de luta e reivindicações, bem como, vem desenvolvendo uma produção de conhecimentos sobre a situação das mulheres nas diversas sociedades. As feministas radicais, por sua vez, identificaram as esferas da vida, consideradas como privadas, como centros da dominação patriarcal. Lutaram pelo fim da tirania da família biológica e a favor da bissexualidade, onde a diferença genital entre os sexos não mais importava (SAFFIOTI, 1987). Ao analisar as relações de poder que estruturam a família e a sexualidade, elas revolucionaram a teoria política que até então não havia visualizado estas instâncias como depositárias da ideologia da desigualdade sexual.

Ao contrário das feministas liberais, para as radicais o Estado é rejeitável em si mesmo, bem como, todas as instituições dentro dele, por constituírem-se como uma estrutura patriarcal que não é neutra, nem media as forças e não permite que as mulheres atinjam seus objetivos políticos. As feministas radicais perceberam as instituições e conceitos sociais como construções de uma cultura masculina, que criou um espaço social patriarcal em que as mulheres eram subordinadas a uma situação social de menor importância política. Por não participar da construção do social, as mulheres se viam subjugadas por estas instituições e conceitos que as silenciavam, perpetuando a violência física e moral. Dessa forma, para combater e se libertar da cultura patriarcal, as mulheres deveriam redefinir o espaço social e tornarem-se agentes da construção de conceitos e instituições sociais. Neste momento, um dos conceitos que faziam parte da pauta de discussões internacionais era o conceito de “direitos reprodutivos”, até então manipulado a partir dos referenciais masculinos.

O feminismo radical foi teoricamente o mais inovador, rejeitando definições tradicionais
de políticas e teorias, enquanto condenava todas as teorias anteriores como patriarcais. Ao contrário da aproximação marxista, que não se esforçou para incorporar mulheres na estrutura política preexistente, tentou em vez disso mudar toda a nossa percepção de sociedade, e reestruturá-la em termos de um conjunto radicalmente novo de conceitos centrados na mulher. O seu objectivo tem sido formar novas identidades políticas. No Brasil, o Feminismo Radical também demarca a sua atuação num contexto de reflexão e lutas, de forma distinta e definitiva, pois, a conjuntura histórica era sugestiva para que as feministas se posicionassem contra a ditadura militar e a censura; pela redemocratização do país, pela anistia e por melhores condições de vida. É um momento de expressiva definição das feministas brasileiras, elas que debateram sobre a sexualidade, o direito ao prazer e ao aborto, compreendendo e sugerindo que o planejamento familiar e o controle da natalidade fossem ações de políticas públicas bem estruturadas.

A tecnologia anticoncepcional tornou-se o grande aliado do feminismo brasileiro, ao
permitir às mulheres igualar-se aos homens, no tocante à desvinculação entre sexo e maternidade, sexo e amor e sexo e compromisso. Ao longo dos anos 1980, um movimento articulado entre as feministas universitárias, promoveu a institucionalização dos estudos sobre as mulheres, tal como ocorria em outros países da Europa e nos Estados Unidos, legitimando-se diante dos saberes acadêmicos, através da criação do núcleo de estudos, da articulação de grupos de trabalho e da organização de eventos para promover a troca entre as pesquisadoras. Dentre outras lutas e atuação concreta das feministas radicais na Bahia, está o exemplo do NEIM – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, criado em 1983, em Salvador.

Embora a diversidade de idéias tenha sido uma experiência rica para o movimento feminista, mas representou, também, uma das causas do declínio do ativismo do feminismo radical. A tese das mulheres unidas em uma irmandade por uma experiência comum também foi ameaçada pela polêmica questão de classe e do lesbianismo. Em última instância, foram as dissensões internas, mas o desgaste de um movimento com estas características, que trouxe em meados dos anos setenta o abrandamento do ativismo do feminismo radical. Ora, é neste período que as feministas radicais se dão conta do deslocamento da ênfase da mulher universal para as mulheres plurais, quando começam a surgir os “estudos sobre mulheres”, gerando um problema teórico-metodológico e as dissensões entre as feministas. É também neste período que o “gênero foi elaborado e conceituado como a construção social das identidades sexuais e objeto dos estudos das feministas”. SARDENBERG, 2002, p. 23).

O contraponto de idéias, a diversidade e a intensidade da atuação do movimento feminista, ao longo de sua história, ilustra a complexidade que envolve a compreensão e definição do conceito de feminismo, bem como, das diversas correntes feministas. Contudo, o que importa é pensar que o poder já fora igualmente dividido e que em algum lugar do globo terrestre possa, nesse instante, também, ser igualmente dividido, mas que, na maioria dos povos conhecidos, não o é. O que importa é que as conseqüências dessa divisão hierarquizada, tanto para homens quanto para mulheres, são nocivas em suas relações. O que se deve perseguir é uma divisão eqüitativa do poder para ambos os sexos em todos os povos da humanidade.

 

Referências

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Milênio. In PASSOS, Elizete, ALVES, Ivia e MACÊDO, Márcia (orgs). Metmoforses: gênero na perspectiva interdisciplinar. Salvador: UFBa/NEIM, 1998, pp. 25-35.

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SARDENBERG, Cecília e COSTA, Ana Alice A. Feminismos, feministas e movimentos sociais. Seminário Mulher, Desenvolvimento e Relações de Gênero. NEM/PUC. (Comunicação). Rio de Janeiro, 1991.